terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A CONSULTA TERAPÊUTICA E O JOGO DOS RABISCOS

jose Outeiral



(1)Donald Winnicott (DWW) foi essencialmente um clínico e Masud Kahn, na introdução que faz ao Da pediatria à psicanálise, escreve que ele atendeu cerca de 60.000 crianças, adolescentes e familiares. Durante cerca de quarenta anos ele atendeu pacientes em consultas em um hospital de pediatria (Paddington Green Children’s Hospital) de Londres.
Esta experiência clínica originou contribuições à teoria psicanalítica, tanto no que diz respeito à psicanálise propriamente dita como à utilização do conhecimento psicanalítico no atendimento sob demanda, ou ao que ele se referiu como importância de adaptação às necessidades do paciente.
Em um trabalho de 1962 (The aims of psycho analytical treatment) DWW escreve relatando seu modo de pensar a clínica:
“... gosto de fazer análise e sempre guardo com expectativa o final de cada uma delas. A análise pela análise não tem sentido para mim. Faço análise porque é disto que o paciente precisa e aceita. Se o paciente não precisa de análise, faço então outra coisa. Na análise, pergunta se: Quanto é permitido fazer? Por contraste, em minha clínica o lema é: Quão pouco precisa ser feito... Em minha opinião, nossos objetivos no exercício da técnica padrão não são alterados, no caso de interpretarmos só mecanismos mentais que pertencem aos tipos psicóticos de desordem e aos estágios primitivos nas fases emocionais do indivíduo. Se nosso objetivo continua a ser o de verbalizar o consciente incipiente em termos da transferência, então estaremos fazendo análise; caso contrário, seremos então analistas fazendo outra coisa que consideramos apropriada à ocasião. E por que não?”
A última frase desta citação é instigante e nos induz a pensar a clínica, nossa própria experiência com os pacientes que nos procuram e que por motivos variados, conscientes e/ou inconscientes, reais ou fantasiados, nos convidam a trabalhar com eles; não a partir de um modelo teórico preestabelecido, mas a partir de uma experiência compartida e de mutualidade: quando em Playing and reality (1971) ele nos esclarece que, em sua opinião, a psicoterapia acontece na superposição da área de brincar e do paciente e do terapeuta – e que quando a criança não consegue brincar o terapeuta deve buscar que ela o consiga – ele não só nos introduz na importância do espaço potencial, espaço dos objetos e fenômenos transicionais, espaço da experiência de mutualidade, como também nos oferece estratégias como, por exemplo, a consulta terapêutica e o jogo dos rabiscos (skuiggle game), nossos temas de hoje.
Lembremos, antes de continuar, que brincar, para DWW, é equivalente à espontaneidade (espontaneous gestur) e criatividade.

A contribuição de Jan Abram
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Em seu dicionário, Jan Abram, que esteve entre nós em 1998, dedica um capítulo exclusivamente ao jogo dos rabiscos, alinhavando as idéias contidas na obra de DWW, através de referências e comentários que faz, esta técnica. Ao longo desta bricollage as citações estão presentes e os comentários se superpõem; mas, pela importância de seu trabalho, coloco seu texto como um anexo.

A contribuição de Maria Ivone
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Maria Ivone Accioly Lins, autora carioca e bastante conhecida de todos nós, tem se dedicado com muita criatividade e propriedade ao tema das consultas terapêuticas e do jogo dos rabiscos.
Em um trabalho intitulado O jogo dos rabiscos: uma aplicação da teoria do jogo de D.W. Winnicott (1990) Maria Ivone alinhava uma série de idéias que vale a pena retomar. Escreve ela:
“A psicoterapeuta situa se, para Winnicott, numa região onde se superpõem duas áreas de brincar, a do paciente e a do terapeuta.
A palavra chave que define as consultas terapêuticas de Winnicott é flexibilidade. Tal característica lhes é conferida, particularmente, pela aplicação do jogo dos rabiscos (skuiggle game), que se caracteriza pela liberdade dos parceiros e pela ausência de normas fixas, o que é próprio das brincadeiras (playing) das crianças, contrastando dessa forma com os jogos estruturados por sistemas de regras (game).
Winnicott utiliza este jogo como técnica de comunicação com a criança. O terapeuta e o paciente executam, alternadamente, traços livres; cada parceiro deve modificar o rabisco do outro à medida que forem sendo realizados. Um sentido põe se a circular, um espaço intermediário se constitui. O procedimento engendra um processo que vai ao gesto criador e à criatividade.
Diria que, nas consultas, os dois parceiros vêm, gradativamente, habitar um espaço potencial onde a criança auxiliada pelo terapeuta realiza, através do gesto criativo – o rabisco que se transforma em imagem e depois em discurso –, uma experiência desveladora de seu self...
A leitura dos relatos das consultas apresentadas por Winnicott mostra, de maneira evidente, como o jogo dos rabiscos se constitui em um processo. As instruções de jogo são muito simples e deixam à criança bastante liberdade: ‘faço um rabisco e você o modifica; depois é sua vez de começar, e sou eu que vou modificá lo’.”
Maria Ivone apresenta neste trabalho o caso de uma jovem de 18 anos, Rosária, e é um texto que sugiro ao leitor interessado.

Algumas idéias de DWW sobre o jogo dos rabiscos
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O livro onde DWW sistematiza sobre as consultas terapêuticas e sobre o jogo do rabisco é Terapeutic consultations in child psychiatry (1971). Neste livro ele nos apresenta 21 casos clínicos, de pacientes entre 21 meses aos 30 anos. O primeiro dos casos “Iiro” é o que nos capturará hoje. Vamos ler o caso, assistir ao vídeo de Hilda Katz (artista plástica e analista da APA – Asociación Psicoanalitica Argentina) e colaboradoras e, por fim, conversaremos sobre o tema...
Se houver interesse e curiosidade no livro Psycho analytic explorations (1989), DWW escreve dois capítulos exatamente sobre o que nos reúne hoje: “O jogo do rabisco” (Cap. 40) e “O valor da consulta terapêutica” (Cap. 41).
Anexo, ao final, o verbete skuiggle game de Alexander Newman (Non compliance in Winnicott’s words, 1995), em seu “Dicionário” sobre a obra de DWW, porque nos remete aos livros, com as páginas inclusive, onde são feitas referências ao tema.
Vejamos alguns comentários de DWW que nos ajudarão em nossa tarefa... Alguns rabiscos que DWW faz para que completemos com os nossos, como ele escreve, quase textualmente, em carta a L. Joseph Stone (18 de junho de 1968, The spontaneous gestur. Sellect letters of D.W. Winnicott, 1987).
“... tenho certamente a intenção de reunir todas estas idéias (sobre a técnica dos rabiscos), porém como você pode imaginar, sou cauteloso a iniciar uma ‘técnica dos rabiscos’ que rivalize com outras técnicas projetivas. Poderia surgir algo estereotipado, como o teste de Rorschach, e se frustraria o objetivo principal do exercício. É essencial a liberdade absoluta, de tal modo que qualquer modificação seja aceita caso seja apropriada. Talvez uma característica distintiva não seja tanto o uso de desenhos mas sim a livre participação do analista atuando na qualidade de psicoterapeuta. (O grifo é meu)
Me encanta falar sobre estas coisas, que ilustram o jogo dos rabiscos que estão nas consultas terapêuticas, porém ao mesmo tempo ... sou muito cauteloso ao colocar isto definitivamente por escrito, para sempre. Melhor, preferiria que cada terapeuta desenvolvesse seu próprio método, tal como eu desenvolvi o meu. (O grifo é meu) ...”
Temos aí algumas peculiaridades de DWW: sugere espontaneidade e criatividade, não quer uma técnica estereotipada e espera que cada terapeuta “crie”, a partir da experiência que ele descreve, seu próprio “jogo dos rabiscos”. Por curiosidade, lembro que esta carta se refere ao texto, publicado originalmente em Voices (1968) e reproduzido no Explorations, no Cap. 40 (“O jogo do rabisco”), leitura que sugeri antes.

A consulta terapêutica
“Eu não diria que uma análise em plena escala é sempre melhor para o paciente do que uma entrevista psicoterapêutica.” Donald Winnicott, O valor da consulta terapêutica, 1965 (Explorations ...)
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A consulta terapêutica, que ocasionalmente pode representar um ou mais encontros, significa a plena utilização da consulta para obter dela a melhor otimização possível, em termos de resultados terapêuticos.
Como DWW deixa bem estabelecido, esta técnica não tem nada em comum com os testes projetivos. Resulta de uma experiência de mutualidade – superposição da área de brincar do paciente e do terapeuta – onde flexibilidade e criatividade do terapeuta são pontos nodais.
DWW escreve (O valor da consulta terapêutica):
“... em outras palavras, há casos em que uma mudança sintomática rápida é preferível a uma cura psicanalítica, ainda que se preferisse a última. Independente disso, existe uma vasta demanda clínica por psicoterapia que não se acha relacionada de maneira alguma à oferta de psicanalistas e, portanto, se houver um tipo de caso que pode ser ajudado por uma ou três visitas a um psicanalista, isso amplia imensamente o valor social do analista e ajuda a justificar sua necessidade de efetuar análises em plena escala, a fim de aprender seu ofício.
Aquilo que estou chamando de entrevista psicoterapêutica faz o mais complexo uso possível deste material relativamente ‘não defendido’. Há perigo real neste trabalho, mas contudo há o perigo de não fazer se absolutamente nada, e os riscos provêm da timidez ou da ignorância do terapeuta, antes que o paciente sinta que foi enganado.”
Quero, brevemente, comentar que para DWW este material “não defendido” é aquele que nas entrevistas iniciais com um paciente levantamos como hipóteses de trabalho, “em termos da descoberta de significados mais profundos e sutis em acontecimentos e associações livres fornecidas na primeira sessão”.
DWW continua, no mesmo trabalho:
“O psicoterapeuta, neste primeiro estágio da entrevista, é um objeto subjetivo.
Com freqüência a criança sonhará com o psiquiatra na noite anterior ao dia da entrevista, de maneira que, na realidade, o psiquiatra está se ajustando à idéia preconcebida do paciente. Em outra linguagem o paciente traz à situação uma certa medida de crença ou de capacidade de acreditar em uma pessoa compreensiva ou que o ajude. Traz também uma certa medida de desconfiança. O terapeuta aproveita se do que o paciente traz e age até o limite da oportunidade que isto concede. O paciente vai embora sem ter feito uma percepção objetiva do terapeuta, e será necessária uma segunda visita para objetificar e despir o terapeuta de magia.”
Quando fala de objeto subjetivo DWW está se referindo à área de ilusão, condição necessária para o estabelecimento do espaço potencial. Este aporte teórico permite localizar este primeiro estágio da consulta terapêutica na conceituação de objeto subjetivo. Somente em encontros posteriores o terapeuta será um objeto objetivamente percebido.
A seguir DWW pontua diferenças entre esta técnica e a psicanálise.
“... existe uma diferença então entre esta técnica e a psicanálise, no fato de que na última a neurose transferencial se desdobra gradualmente e é usada para interpretar, na entrevista terapêutica há um papel já pré ordenado para o terapeuta, baseado no padrão de expectativa do paciente. A dificuldade, para o terapeuta, é sair se tão bem quanto pode descobrir se ser permitido fazer... Naturalmente, não podemos compreender de imediato, a menos que sejamos informados; e na primeira entrevista o paciente está amiúde disposto e em verdade ávido por informar ao terapeuta, fornecendo tudo que é necessário para a interpretação profunda e significante.
Eu diria que é comum os pacientes saírem da primeira entrevista desiludidos e sem disposição para efetuar uma nova tentativa de buscar auxílio psiquiátrico por causa do fracasso do terapeuta em utilizar o material apresentado. É comparativamente raro um paciente ser ferido por interpretações erradas, feitas em uma tentativa genuína de usar o que é apresentado... aprendi isto com meus pacientes psicóticos (esquizofrênicos limítrofes), que são excepcionalmente tolerantes quanto às limitações do entendimento por parte do analista, embora possam ser, ao mesmo tempo, extremamente intolerantes quanto a irregularidades no comportamento do analista (sua inconfiabilidade, um desempenho desigual, exibição através da tranqüilização do ódio inconsciente, mau gosto, etc.).”
No tocante à sua experiência neste setting específico, DWW escreve:
“... Não existem instruções técnicas nítidas a serem dadas ao terapeuta, uma vez que ele deve ficar livre para adotar qualquer técnica que seja apropriada ao caso. O princípio básico é o fornecimento de um setting humano e, embora o terapeuta fique livre para ser ele próprio, que ele não distorça o curso dos acontecimentos por fazer ou não fazer coisas por causa de sua própria ansiedade ou culpa, ou sua própria necessidade de alcançar sucesso. O piquenique é do paciente, e até mesmo o tempo que faz é do paciente. O final da entrevista pertence também a ele, exceto onde não existe estrutura na entrevista por causa de uma falta de estrutura na personalidade do paciente ou no relacionamento do paciente com objetos, caso em que esta falta de estruturação é ela própria comunicada... Tenho esperança que o único aspecto estabelecido que será observado, após um amplo exame de meus casos, será uma liberdade de minha parte em utilizar meu conhecimento e minha experiência para atender a necessidade do paciente específico...”
Mas DWW comenta algumas questões específicas...
“É bom preparar antecipadamente os pais, talvez por telefone, que provavelmente será melhor para a criança que ela seja vista em primeiro lugar. O fato é que o progenitor pode ter de ser negligenciado nesta primeira ocasião. É direito do paciente ser o paciente e se o progenitor não consegue cooperar com este arranjo, precisa se então considerar se a pessoa enferma não será de fato o progenitor. Se o progenitor quer ser o paciente, então ele deve ser visto em primeiro lugar...
É axiomático que se um setting profissional correto é fornecido, o paciente, isto é, a criança (ou adulto) que se acha em sofrimento, trará a aflição para a entrevista de uma forma ou de outra. A motivação é muito profundamente determinada. Talvez seja desconfiança o que se demonstra, ou uma confiança grande demais, ou a confiança é logo estabelecida e as confidências cedo se seguem. Seja o que for que aconteça, é o acontecer que é importante.”
DWW conclui o texto com um parágrafo memorável.
“Uma menina de dez anos me disse: ‘Não importa que algumas das coisas que o senhor diz estejam erradas, porque eu sei quais são as certas e quais as erradas’. Pouco mais tarde, durante o tratamento, ela me disse: ‘Eu não continuaria a tentar adivinhar, se fosse o senhor’, querendo dizer com isto que podia tolerar o fato de eu não saber.”

... e, finalmente, para arrematar, o jogo dos rabiscos
“Trata se de um jogo sem regras” (Donald Winnicott, O jogo dos rabiscos, 1964, 1968 [Explorations...]).

(6)
Podemos agora retomar o jogo dos rabiscos com a ajuda de DWW:
“... com relação a qualquer técnica que o terapeuta esteja preparado para usar, a base é o brincar. Declarei em outro momento que, em minha opinião, a psicoterapia tem de ser efetuada na sobreposição das duas áreas do brincar (a do paciente e a do terapeuta), ou, então, o tratamento tem de ser dirigido no sentido de capacitar a criança a tornar se capaz de brincar – isto é, ter razões para confiar na provisão ambiental. Tem de se presumir que o terapeuta possa brincar e tenha prazer em brincar... Uma técnica útil foi denominada de ‘jogo do rabisco’, que é simplesmente um método para estabelecer contato com um paciente infantil. É um jogo que duas pessoas quaisquer podem jogar, mas geralmente na vida social o jogo rapidamente deixa de ter significado... O fato de o terapeuta jogar livremente sua própria parte na troca de desenhos tem, certamente, grande importância para o sucesso da técnica...”
“... em um momento adequado após a chegada do paciente, geralmente após pedir ao genitor que o acompanha para ir à sala de espera, digo à criança: ‘Vamos jogar alguma coisa. Sei o que gostaria de jogar e vou lhe mostrar’. Há uma mesa entre a criança e eu, com papel e dois lápis. Primeiro apanho um pouco de papel e rasgo as folhas ao meio, dando a impressão de que o que estamos fazendo não é freneticamente importante, e então começo a explicar. Digo: ‘Este jogo que gosto de jogar não tem regras. Pego apenas o meu lápis e faço assim...’ e provavelmente aperto os olhos e faço um rabisco às cegas, prossigo com a explicação e digo: ‘Mostre me se se parece com alguma coisa a você ou se pode transformá lo em algo; depois faça o mesmo comigo e verei se posso fazer algo com seu rabisco’...”
“... Isto é tudo que existe a título de técnica e tem se de enfatizar que sou totalmente flexível mesmo neste estágio inicial, de maneira que se a criança quer desenhar, ou conversar, ou brincar com brinquedos, ou fazer música ou traquinagens, fico livre para adaptar me aos desejos dela. Com freqüência um menino quererá jogar o que chama ‘jogo de pontos’, isto é, algo que pode ser ganho ou perdido. Apesar disso, em uma alta proporção de casos de primeira entrevista, a criança aceita por tempo suficientemente longo os meus desejos e o que gosto de jogar para que algum progresso seja alcançado. Cedo as recompensas começam a aparecer, de maneira que o jogo continua. Amiúde, no decorrer de uma hora, fizemos juntos 20 a 30 desenhos e, gradualmente, a significância destes desenhos conjuntos tornou se cada vez mais profunda e é sentida pela criança como fazendo parte de uma comunicação de importância.”

Bibliografia
ABRAM, J. (1996). The Language of Winnicott. A dictionary of Winnicott’s use of words. London: Karnac Books, 1996.
NEWMAN, A. (1995). Non-compliance in Winnicott’s words. London, 1995.
RODMAN, F. (1987). El gesto espontaneo. Cartas escogidas de D.W. Winnicott. Buenos Aires: Paidós, 1990.
WINNICOTT, D. (1978). The piggle. London: Hogarth Press, 1978.
___. (1989). Explorações psicanaliticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

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