domingo, 27 de março de 2011

QUANDO A ALMA ADOEÇE E O CORPO CHORA: A PSICOSSOMÁTICA.






O termo “psico-somático”, tal com está grafado, apareceu pela primeira vez na literatura médica há aproximadamente 200 anos, em um texto de Heinroth, clinico alemão no qual o autor buscava adjetivar uma forma particular de insônia. Hoje em dia ninguém mais contesta a inequívoca interação entre o psiquismo determinando alterações somáticas e vice-versa o que permitiria a ilustração com exemplos clínicos que vão dos mais simples ( a corriqueira evidência de estados de raiva ou medo produzindo palidez e taquicardia, vergonha causando enrubescimento, um estado gripal desencadeando uma reação depressiva e reciprocamente, um estado depressivo facilitando o surgimento de uma gripe, etc.), passando por situações relativamente complexas. Assim é conhecido o fato bastante freqüente de mulheres que embora desejosas de engravidar, mantêm-se inférteis durante um longo período de anos até que, após a adoção de uma criança pelo casal comecem a engravidar com facilidade. Igualmente as psicossomatizações podem atingir níveis bem mais complexos e ainda inexplicáveis como nos explica David Zimerman; conforme comprovam os modernos estudos da psicoimunologia e dados da observação clínica, como da instalação de quadros cancerígenos diante de perdas importantes, etc.




A escolha e linguagem do órgão.

Os trabalhos da psicanálise foram da maior importância para entender o problema da escolha do órgão, seja em doenças psicogênicas sem substratos orgânicos – sintomas histéricos ou hipocondríacos – seja acompanhada em situação de lesão estabelecida, como as enfermidades aqui citadas. Assim, confirmando as primeiras observações de Freud e Ferenczi mostraram a importância que adquirem certos órgãos, sistemas e partes do corpo, por terem sido sede de doenças em certos períodos cruciais do nosso desenvolvimento, ou por terem recebido especial atenção do meio ambiente, ficando carregados de significação afetiva. Este é o caso de uma neurose cardíaca em cuja infância se constatou um sopro cardíaco sem qualquer significação, mas foi supervalorizado por uma mãe ansiosa e superprotetora; ou um sério episodio de gastroenterite na primeira infância, funcionando como marco para futuras manifestações, funcional ou somático, do trato digestivo, que passaria a representar o clássico papel de órgão de choque. Estes conhecimentos e os progressos adquiridos no estudo da mente infantil e da relação da criança com o ambiente permitiram compreender a chamada linguagem dos órgãos. Esta fenomenologia universal, facilmente constatável em expressões de qualquer idioma como “você me provoca náuseas”, “este problema está me dando dor de cabeça”, também está contido na sabedoria popular sobre os mecanismos causadores de doenças, em frases” você está me pondo doente” ou” fulano enfrentando um problema tão grande que vai ficar doente”, “ teve uma contrariedade e morreu”. Tal linguagem, pelo menos potencionalmente presente em qualquer enfermidade, é basicamente um resquício das fases em que o ser humano a usava universalmente, por não contar com desenvolvimento das duas principais vias de expressão da vida adulta: a linguagem verbal e a ação motora. Assim em momentos ulteriores da vida em que, por situações de inibição ou de conflito, o uso destas vias fica bloqueado, volta ao uso de sua antiga linguagem, tão arcaica e primitiva que frequentemente escapa a nossa observação.
Por nítida conexão com as primeiras fases do desenvolvimento, o aparelho digestivo é a sede principal destes fenômenos é fácil sentir como suas funções podem expressar atos da maior significação para nossa vida afetiva, como receber, dar e reter, porém a significação da pele e do aparelho respiratório também deve ser destacada neste sentido. Winnicott, especialmente, enfatizou a importância do contato epidérmico mãe-filho no importante fenômeno do Holding, isto é, a criação, por parte da mãe, de toda uma atmosfera de carinho, aceitação e proteção, ao “aninhar” o filho. Hoje se sabe também da significação deste fato no estabelecimento de limites do Ego e no processo de diferenciação eu-mundo. Quanto a respiração, adquire especial importância desde o momento do nascimento, além de acompanhar, se alternado nos principais estado emocionais; também contém em si o mesmo sentido de receber funções orai. A relevância destes fatos na gênese de condições como os problemas funcionais digestivos, as dermatoses alérgicas, a asma brônquica e as dispnéias em geral tem sido comprovavas por inúmeros trabalhos do psicanalista René Spitz, a respeito da grande incidência de dermatites atópicas em crianças predispostas, que eram rejeitadas por suas mães, principalmente no contato físico. Alías este autor foi dos que mais enfatizaram as carências afetivas, maternas, sobretudo, sobre o desenvolvimento e saúde da criança descrevendo a situação que chamou “marasmo”, na qual o pequeno ser entra em caquexia e mesmo morre por falta de amor. Se a carência não é, contudo tão extrema pode gerar várias respostas anômalas somáticas na criança.


Identificação e somatização

Outro importante processo mental estudado a partir dos trabalhos analíticos e de grande significação para o nosso tema é a identificação. Este é o mecanismo pelo qual a criança, de modo automático e inconsciente, vai se assemelhando e inconsciente vai se assemelhando na conduta. Aquisição de interesses, valores e ideais aos adultos dos quais depende, ama e admira ou teme. Este repetir de comportamentos vai adquirindo conotações cada vez mais complexas à medida que o indivíduo se desenvolve e pode fazer identificações e seletivas, sintônicas com sua própria maneira de ser. A identificação é feita através de sucessivas introjeções – no caso identificações introjetivas. Ao longo desse processo irá construindo o seu sentimento de identidade, que lhe permite sentir-se um ser único, que lhe permite sentir-se um ser único, ao mesmo tempo igual e diferente de todos os demais, permanecendo o mesmo ao longo dos anos, apesar das grandes mudanças internas e externas. Neste desenvolvimento têm grande importância as várias etapas de separação –individualização, processos complementares estudados pela psicanalista M. Mahler, através dos quais a criança ao mesmo tempo que progressivamente se separa da mãe vai adquirindo sua individualidade-identidade
Se por várias razões o desenvolvimento emocional é prejudicado também será capacidade a capacidade do indivíduo de fazer identificações mais adultas e seletivas. Predominando identificações mais infantis e imitativas. Ao mesmo tempo, os modelos oferecidos à criança têm grande importância, pois, se são inadequados, propiciam identificações incompatíveis com o desenvolvimento emocional harmônico, ditas psicológicas. Estas identificações patológicas explicam muitos traços neuróticos de caráter e podem gerar sintomas somáticos, no processo de mimetizar sofrimentos e enfermidades dos modelo-padrão que foram significativos. Assim, por exemplo, uma dismenorréia pode ser conseqüência da identificação de uma adolescente com uma mãe que apresentou este quadro por muitos anos e influenciou intimamente esta filha a este respeito. Ao mesmo tempo, as identificações são processos importantíssimos na dinâmica das patologias familiares, como também nos estados histéricos e hipocondríacos. A identificação pode ser com um órgão doente ou com todo um ser doente, mental ou fisicamente.
Como a identificação, a identidade também tem suas patologias. Assim, problemas de identidade podem apresentar-se como sintomas de despersonalização ou mesmo constituir alterações permanentes, personalidades “como se”, em que o indivíduo funciona inautenticamente como se fosse outro. Por outro lado, todos nós passamos por crises de identidade, ao longo de nossa evolução. Destas a mais importante é a crise da adolescência, em função principalmente de aquisição definitiva da identidade sexual. Durante tais crises podem surgir sintomas mentais ou as mais variadas somatizações, como por exemplo, a acne puberal que tem reconhecida relação com a tensão emocional. Entre nós Hoirisich estudando estas crises referiu-se a importância na sua gênese, entre múltiplas causas, de alterações da imagem corpora, representadas por obesidade e aspecto ambissexual num caso, e decorrentes de múltiplas cirurgias plásticas em outro.
O transexualismo é uma perturbação de identidade sexual que tem particular importância no momento atual, pela tendência desses pacientes a tentarem mudar de sexo através de cirurgias “corretivas”. Em três casos que tivemos a oportunidade de estudar, mostramos que além dos aspectos psicológicos, prevalentes podem coexistir disformias sexuais (alterações da imagem corporal) contribuído para uma atitude transexual. Vemos nesses pacientes não apenas alterações de identidade sexual, porém da própria identidade pessoal, ao tentarem existir “como se” fossem pessoas de outro sexo. Há de se dizer que aqui não fazemos referência à homossexualidade. Há de se fazer uma distinção abissal entre uma condição de homossexualidade, heterossexualidade (gêneros sexuais) e transexualismo a como começar pelo sufixo: transexualismo.
Também dentro das esferas dos processos identificativos está descrita a reação de aniversário. Trata-se da ocorrência de uma enfermidade no período que corresponde ao “aniversário” de um evento traumático que afetou uma pessoa importante para o indivíduo – morte de um familiar geralmente. Por vezes surge como reação ao aniversário de uma patologia importante anterior. , Nestas situações, a vivência inconsciente do tempo – muito mais poderosa que imaginamos – joga um papel decisivo, já que o fenômeno ocorre sem que se dê conta da inter-relação dos fatos. Exemplo deste tipo peculiar ocorreu com um indivíduo com lúpus eritematoso sistêmico Tratava-se de uma mulher jovem que entrava em depressão desde que seu pai adotivo, que chamava de avô, adoeceu com câncer gástrico. Quando este faleceu, surgiu uma pequena lesão eritematosa facial, que depois desapareceu. Um ano depois, exatamente no mês de aniversário do “avô”, surgiu o quadro completo do lúpus sistêmico. Neste exemplo também podemos ver a relação freqüente entre luto patológico e reação ao aniversário.


Perda, Luto e enfermidade

Outra constatação dos trabalhos psicanalíticos é a evidência de situações de perda antecedendo a eclosão de várias enfermidades. Aqui o que tem importância é a significação emocional da perda, seja de um ente querido, status ou algo que para outrem seria irrelevante. Nesta linha podemos citar importantes trabalhos de Engel no estudo de colite ulcerativa, na asma brônquica. Também na úlcera péptica, tireotoxiose, diabete, leucemia e outras doenças, tal fato tem sido descrito na produção psicanalítica. Engel, novamente, que vem estudando há muitos anos este problema, dá especial ênfase à invasão do nosso mundo interno por sentimentos de desânimo e desesperança após a perda, antecedendo a somatização. A atuação de uma condição de perda se situa de um lado, dentro da influência geral da frustração, de outro, como conseqüência da intensidade dos impulsos agressivos constitucionalmente adquiridos. A vulnerabilidade do ego à frustração parece ser a condição básica geradora, seja das neuroses, seja das predisposições, de ordem psicológica de adoecer, conforme contribuições psicanalíticas de M. Klein e W. Bion, enfatizando a importância da força de coesão do Ego comum índice de saúde mental e física. Ainda Dentro desta linha queremos nos referir à importância dos processos de luto na gênese das enfermidades. Chamamos de luto ao estado que segue à perda de um ser amado. Esta perda implica na necessidade de superação – fazer um luto normal – e, na incapacidade de a aceitarmos como tal, temos o luto não cumprido o luto patológico. O estudo do processo do luto começou com Freud, monumental trabalho, Luto e Melancolia em que diferenciou o processo de luto normal , ou pesar que segue a morte de um ente querido, do luto patológico, expresso no quadro de melancolia. Mostrou-nos que durante o luto há uma introjeção do objeto dentro do ego – e conseqüente identificação com o objeto perdido – que tem a finalidade de manter um estreito contato com o mesmo durante o período necessário para a aceitação da perda e a realização do luto normal. A dificuldade em fazermos o luto é em função da importância da perda, da capacidade do Ego de lidar com a mesma e, principalmente, do tipo de relação com o objeto perdido. Assim se nos sentimos em débito ou culpa com este, surge a tendência de expressar estes sentimentos através da melancolia, que segue a perda. Gringerb retomando os estudos de Freud e M. Klein sobre o luto diz-nos que não apenas a perda de um ente querido leva a um estado de luto; assim qualquer situação de perda - de uma pessoa, país, status, ideal – requer sua superação sua superação e conseqüentemente luto. E acrescenta-nos, ao lado das grandes perdas e dos grandes lutos temos a micro perdas e micro lutos de todo o dia, como um encontro que chegamos atrasados, um propósito qualquer que não se cumpre. Isso condiciona muitas das angústias ou depressões do dia a dia e muitas somatizações passageiras como cefaléias, dispepsias e múltiplos sintomas relacionados com estes complexos fatos traduzidos na expressão “aborrecimentos”.
O luto patológico decorrente de uma morte real pode se manifestar por um quadro depressivo ou por outras várias formas de expressão somática, o que na nossa experiência pessoal é um fato freqüente não só no desencadear de doenças somáticas como nas demais patologias em geral.


O Paciente Hipocondríaco

Sem dúvida a hipocondria foi e contínua sendo uma dos maiores desafios à psicanálise e a medicina. De início parece-nos útil distinguir a reações hipocondríacas passageiras – que costumam surgir em estudantes durante o curso médico, por exemplo – da hipocondria crônica, que é considerada pelos modernos autores psicanalíticos como uma psicose não deteriorante.
Estes pacientes que são muitas vezes conhecidos pela bizarria das suas queixas e comportamento, costumam, pela preocupação compulsiva com seus sintomas e pela atitude permanentemente suspeita, provocar freqüentes irritações contratransferenciais nos médicos pelos quais passam. Lipsitt, escrevendo a este respeito enfatiza a importância da iatrogenia na indução destes casos, através de cirurgias desnecessárias, múltiplas visitas médicas e, principalmente, como conseqüência da necessidade que tem o médico de fazer, também compulsivamente, um diagnóstico de quadros clínicos ainda mal definidos.
Schmale, comentando o trabalho de Lipsitt define o hipocondríaco como um paciente à procura de uma doença somática. Para ele este paciente tem uma estrutura de personalidade basicamente obsessiva e certas características comuns. Assim são pessoa que tiveram responsabilidades de adultos muito cedo ou desde cedo. Freqüentemente eles tiveram pais ou irmão com doenças incapacitantes fato que concorreu para aumentar seu sentimento precoce de responsabilidade. Posteriormente quando estas pessoas ficam doentes ou experimentam modificações no seu estado de saúde, costumam tornar-se fiéis observadores de seu funcionamento corporal. Isso faz surgir sintomas de natureza hipocondríaca que são reforçados pela atitude das pessoas que lidam com o paciente, permitindo uma situação de dependência, que não seria aceita de outra forma. Ocorrem recidivas, quando o paciente é ameaçado por modificações ambientais que sente não ter condições de controlar. A seguinte dinâmica inconsciente seria encontrada no hipocondríaco: hostilidade reprimida dirigida contra a representação simbólica de um sintoma físico como a solução parcial desse conflito; necessidade de expiar culpas através das queixas somáticas; doença como uma defesa contra sentimentos de abandono e perigo de morte, relações ambivalentes durante importante fase do desenvolvimento e finalmente o benefícios secundário advindo da doença.

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